"Ontem à tarde, apaixonei-me por uma árvore. Passa os seus dias na
berma de uma estrada regional, a uma dezena de quilómetros daqui. A sua
folhagem cobre uma parte da estrada. Ao atravessar a sombra que projeta,
levantei a cabeça, olhei para os seus ramos como ao entrar numa igreja os olhos
se dirigem por instinto para a abóbada. A sua sombra era mais quente do que a
das igrejas. Uma das experiências mais delicadas da vida é a de caminhar com
alguém pela natureza, falando de tudo e de nada. A conversa mantém os
passeantes junto a si próprios, e por vezes algo da paisagem impõe o silêncio,
impõe sem constrangimentos. O aparecimento dessa árvore fez surgir em mim um
silêncio de completa beleza. Durante alguns instantes não tinha nada a pensar,
a dizer, a escrever e até, sim, nada mais a viver. Fui levantado alguns metros
acima do solo, carregado como uma criança nos braços verdeescuro, iluminados
pelas sardas do sol. Durou alguns segundos e esses segundos foram longos, tão
longos que um dia depois duram ainda. O que aconteceu ontem preencheu-me.
Parece-me vão querer a repetição. Num punhado de segundos, essa árvore deu-me
alegria suficiente para os próximos vinte anos - pelo menos.
Olho este caderno, apenas escrevi a data, levanto
a cabeça, um pardal bate as asas no céu, e já está: a minha página está
escrita, o pássaro acabou de levar o dia inteiro nas suas asas."
Bobin, C. (2022). Auto-retrato com radiador.
Porto: Flaneur.
Auto-Retrato com radiador / Christian Bobin. (2020). Porto: Flâneur.
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