sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Uma biblioteca imaginária - sugestões de leitura

"É então isto um livro,
este, como dizer?, murmúrio,
este rosto virado para dentro de
alguma coisa escura que ainda não existe
que, se uma mão subitamente a toca,
se abre desamparadamente
como uma boca
falando com a nossa voz?
É isto um livro,
esta espécie de coração (o nosso coração)
dizendo ‘eu’ entre nós e nós?”

Manuel António Pina,”Os livros”, in
Todas as Palavras, Assírio & Alvim.

 

    Biblioteca imaginária é aquilo que cada um é, o vivido e o sonhado, o combatido e o criado. Tudo o que vivemos é feito de histórias. Instantes criados, vividos e embalados em momentos, onde lugares, geografias, atmosferas, objetos, pessoas se oferecem numa composição de múltiplas faces. As histórias, como nós, são os elementos multiplicados e recontados como se tratasse de uma boneca russa, as matrioskas do que nos é possível contar, ou tão só imaginar. As Histórias. São elas que nos compõem. Dão-nos pontos de referência, alimentam-nos em geografias de impossível, ou em desejos de mudança, em respostas para o ocasional. Nelas sobrevivemos ou nos perdemos a compor aquilo que o real devia ser. São pois lugares, atmosferas, vivências do que amamos, das relações que conseguimos estabelecer. Sem elas não temos identidade, não temos um reconhecimento do mundo, pois elas são mais que o nosso nome, são as nossas propriedades  no real. As Histórias podem nos salvar e podem nos fazer naufragar. No fim as Histórias somos simplesmente nós. Lemos por muitos motivos. Para reconhecimento do nome das coisas, dos outros, para vermos um outro modo de podermos ser algo que tentamos construir. Definimos palavras com o mundo, registamo-las escrevendo-nos. E viajamos.

   O livro é uma continua viagem, a escrita da nossa imaginação tornada possível em mundos inventados e “quase” reais. Existe a viagem que se se realiza dentro do livro, dos instantes de leitura, das cores e dos aromas dos espaços onde se realiza. A viagem permanente, aquela que nos permite transformar um sentido, uma forma de ver o mundo, de nele escrever o que tentamos ser. A viagem como descoberta, nas suas dimensões físicas e espirituais.

   Conhecer o mundo é ir ao encontro de diversas culturas, de diferentes cores, de ver vários modos de vida. Os livros podem ser os pontos de uma descoberta ou de uma memória. Ler como viajar é construirmo-nos. Partir das palavras e fazer o caminho para descobrir os poemas do planeta, em cada recolha de sal e pó. É a viagem que nos organiza, nos identifica e é nela que a variedade do mundo nos recria. A viagem é uma forma de aprendizagem, com ela podemos compreender a beleza do planeta, a sua diversidade, o belo nos momentos de imperfeição de que é composta a vida. Afinal, como disse Santo Agostinho o “mundo é um livro”. Importa conhecê-lo nas suas formas materiais e nas suas palavras, essa biblioteca imaginária que é cada um de nós. Deixamos algumas sugestões de leituras para estes dias.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Os leitores

 


Os Leitores que integram o Top5 com mais requisições durante o 1º período. A todos eles os nossos parabéns!

Júnior Ochoa;
Laura Dolci;
Joana Machado;
Rafael Costa;
Afonso Nunes.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Livros mais requisitados: novembro e dezembro

 

Alguns dos títulos requisitados no 1.º período:

Os Maias, de Eça de Queirós;
A Balada da praia dos cães, de José Cardoso Pires;
Uma cana de pesca para o meu avô, de Gao Xingjian;
A Eneida, de Virgílio;
A jangada de pedra, de José Saramago;
Admirável mundo Novo, de Aldous Huxley;
Mrs Dalloway, de Virginia Woolf; 
O Perfume, de Patrick Süskind; 
O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde; 
O vendedor de passados, de José Eduardo Agualusa; 
Quem me dera ser onda, de Manuel Rui; 
Se Isto é um Homem, de Primo Levi;

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Leituras... Um conto de Natal

 Um conto em alguns dias:


"Todos os anos, pelo Natal, eu ia a Belém. A viagem começava em dezembro (...)
Primeiro pela colheita do musgo. Cortava-se como um bolo, era bom sentir as grandes fatias despegarem-se da areia, dos muros ou dos troncos das árvores velhas, principalmente da ameixieira. Enchia-se a canastra devagar, enquanto a avó ia montando o que se chamaria hoje as estruturas, ou mesmo infraestruturas, junto da parede da sala de jantar que dava para o jardim. Eram caixotes, caixas de chapéus e de sapatos viradas do avesso, tábuas, que pouco a pouco ela ia cobrindo de musgo, enquanto fazia carreiros e caminhos com areia e areão. Mais tarde os rios e os lagos, com bocados de espelhos antigos, de vidros ou mesmo de travessas cheias de água. Até que todos os caixotes, caixas e tábuas desapareciam. Ficavam montanhas, planícies, rios, lagos. Era uma nova criação do mundo. Aqui e ali uma casinha ou um pastor com suas cabras. E todos os caminhos iam para Belém.

Não era como o presépio da Igreja que estava sempre todo pronto, mesmo antes de o Menino nascer. A cabana, a vaca, o burro, os três reis do Oriente. Maria, José, Jesus deitado nas palhinhas. Via-se logo que era a fingir. Não o da avó, que era mais do que um presépio, era uma peregrinação, uma jornada mágica ou, se quiserem, um milagre. Nós estávamos ali e não estávamos ali. De repente era a Judeia, passeávamos nas margens do Tiberíades, andávamos pelo Velho Testamento, João Baptista batizava nas águas do Jordão e aquele monte, ao longe, podia ser o Sinai ou talvez o último lugar de onde Moisés, sem lá entrar, viu finalmente a terra onde corria o leite e o mel. Mas agora era o Novo Testamento. A avó ia buscar as figuras ao sótão, eram bonecos de barro comprados nas feiras, alguns mais antigos, de porcelana inglesa, como aquele caçador que a avó colocava à frente dizendo: Este é o pai.
Seguia-se a mãe, saía de cima de uma mesinha da sala de visitas e agora estava ao lado do pai, olhando levemente para trás onde, entretanto, a avó já tinha colocado figuras mais toscas, eu, a minha irmã, os primos, todos a caminho de Belém.

- E a avó?, perguntava eu.
- Eu já estou velha para essas andanças.

De dia para dia mudávamos de lugar. E todas as manhãs deparávamos com novas casas, mais rebanhos, pastores, gente que descia das serras, atravessava os rios e os lagos. Os caminhos ficavam cada vez mais cheios. E todos iam para Belém. À noite tremulavam luzes. Acendiam e apagavam. Mas ainda não se via a cabana, nem Maria, nem José.
Então uma noite, entre as estrelas do céu, aparecia uma que brilhava mais que todas. (I)

- Esta é a estrela, dizia a avó.

E era uma estrela que nos guiava. Na manhã seguinte lá estavam eles, os três reis do Oriente, Magos, explicava o pai, que também não dizia Pai Natal, dizia S. Nicolau, talvez por influência de uma misse de origem russa que em pequeno lhe falava de renas e trenós e de S. Nicolau atravessando as estepes. Cheirava a musgo na sala de jantar. Cheirava a musgo e a lenha molhada que secava em frente do fogão. E os Magos lá vinham, a pé, de burro, de camelo. Traziam o oiro, o incenso, a mirra. Às vezes nós, os mais pequenos, juntávamo-nos e cantávamos: “Os três reis do Oriente / Já chegaram a Belém.”

- Não chegaram nada, atalhava a avó, ainda não.

Estávamos cada vez mais perto. E também nervosos. Confesso que às vezes fazia batota. Empurrava-nos um pouco mais para a frente, para mais perto de Belém e do lugar onde eu sabia que mais tarde ou mais cedo a avó ia pôr a cabana. Mas ela descobria.
- Não lucras nada com isso, podes apressar toda a gente, não podes apressar o tempo.
Cada vez havia mais luzes na Judeia. Por vezes surgiam novos lagos, eram mistérios da minha avó. E a estrela lá estava, a grande estrela de prata que brilhava mais do que todas as outras, às vezes eu ia à janela e via a projecção daquela estrela, ficava confuso, já não sabia se era a estrela da sala ou uma estrela do céu, era uma estrela nova, uma estrela de prata, era uma estrela que nos guiava. No céu, na sala, na Judeia, talvez dentro de nós." (II)


"Até que chegava o primeiro dos grandes momentos solenes. A avó chamava-nos ao sótão ( nós dizíamos forro ), abria uma velha arca e desempacotava a cabana.
Depois, muito comovida, quase sempre com lágrimas nos olhos, as figuras de Maria e José.
- Não há nada tão antigo nesta casa, já eram dos avós dos meus avós.
Impressionava-me sobretudo o manto muito azul de Maria e o rosto magro, quase assustado, de José. A avó limpava-os com muito cuidado e mandava-nos sair. Nunca nos deixou ver o resto.
À noite, quando regressávamos da missa do galo, a que a avó não ia, chegávamos a casa e finalmente estávamos em Belém. A estrela brilhava intensamente sobre a cabana, Maria e José debruçavam-se sobre o berço, onde Jesus, todo rosado, deitado nas palhinhas, agitava os braços e as pernas, envolvido pelo bafo quente dos animais, enquanto os três reis do Oriente, agora sim, chegavam a Belém para depositar aos pés do Menino o oiro, o incenso, a mirra. E vinham os pastores, e vinha o pai, de caçador, a mãe, de vestido de baile, e vínhamos nós, eu, a minha irmã, os primos, não éramos de porcelana nem de barro, estávamos ali em carne e osso, era noite de Natal, uma estrela nos guiava, brilhava sobre a Judeia e sobre o presépio, brilhava cá fora entre as estrelas, brilhava dentro de nós. Naquela noite, naquele momento, nós não estávamos na sala de jantar em frente do presépio, tínhamos chegado finalmente a Belém para adorar o Menino ao lado de Maria e José e dos três reis do Oriente, Magos, não conseguia deixar de corrigir o meu pai.
Mas mágica, verdadeiramente mágica era a avó. Era ela que fazia o milagre da transfiguração, trazia o Natal para dentro de casa e levava-nos a todos até Belém. O cheiro a musgo e a lenha. Os montes, os vales, os rios, os lagos. Caminhos e caminhos que iam para Belém. E a estrela de prata, a estrela que nos guiava. Era uma estrela no céu, dentro de casa, dentro de nós. Pela mão da avó ela brilhava. Pela sua magia Belém estava dentro de casa. E a casa também ia até Belém.
Mais tarde, muito mais tarde, eu estava no exílio. Na noite de Natal os revolucionários ficavam tristes e nostálgicos. Talvez recordassem outras avós, outros presépios, outros lugares. Reuniam-se em casa deste ou daquele, improvisava-se uma árvore de Natal, trocavam-se presentes. Mas ninguém, nem mesmo os mais duros, os que faziam gala em dizer que o Natal para eles não significava nada, nem mesmo esses conseguiam disfarçar uma sombra no olhar. Saudade, dir-se-á. Mas talvez fosse mais do que saudade e solidão e o pior de todos os exílios que é o de se sentir estrangeiro no mundo. Talvez fosse a consciência de que, para lá de todas as crenças ou não crenças, havia um irremediável sentimento de perda. Muitas vezes me perguntei o que seria. Mas não conseguia responder. Sentia o mesmo aperto, o mesmo buraco por dentro, o mesmo sentimento de algo para sempre perdido.
Uma noite de Natal, em Paris, eu estava sozinho. Comprei uma garrafa de vinho do Porto, mas não fui capaz de bebê-la assim, completamente só, num quarto de criada de um sexto andar numa velha rua do Quartier Latin. Peguei na garrafa e fui até aos Halles. Procurei o bistrot onde costumava comer uma omelete de fiambre. Felizmente estava aberto. Pedi a omelete e abri a garrafa. Havia mais três solitários no bistrot, um velho de grandes barbas, um tipo com cara de eslavo, um africano. Convidei-os para partilharem comigo a garrafa de Porto, que não resistiu muito tempo. Encomendámos outras bebidas. ." 

                           A Estrela / Manuel Alegre. Lisboa: D. Quixote;  Imagem: Copyright - página do autor

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

 


A natureza e a vida rodeiam-nos. Em latitudes nórdicas a natureza apresenta-se de tal modo que parece uma evidência uma relação com cada um, mas em todos os lugares ela se apresenta em formas de magia e mistério. As árvores inundam-se em sonhos de luz. O dia corre em sequências animadas de movimento e em fim de tarde, o seu crepúsculo morre quando as árvores adormecem de paisagem. 

É a luz das árvores que nos acolhe nos dias e é nelas que o homem se vê, como no princípio das coisas. Antes dele estão todos os sonhos das árvores, todas as iluminações a dar um sentido aos caminhos do dia, à espera da palavra, o seu sagrado mistério. As árvores fundem-se no dia, com a virtude de quem compreende o nascimento, como a forma primeira e única de existir. A germinação, o crescimento e o amadurecimento. Adormecem na escuridão para se iluminar em cada dia, projetando-se no azul, como uma arquitetura de verde, a afirmar-se no solo e a desenhar uma história, uma memória. 

As árvores parecem mais capazes de uma luminescência que nós. uma inteligência nas coisas. O que aprendemos desse caminho edificado no ar, nas raízes de um solo, nos sons vertidos no silêncio do bosque? O que pode o homem aprender com essa determinação de uma raiz, com o tempo concentrado em canções de vento, em asas de pássaros, em troncos de chuva? O que as árvores nos ensinam é que nós ficamos sempre como uma permanência, um rosto de brisa nos espaços vazios, o silêncio húmido da chuva, uma clareira de hibiscos nas margens do rio. 

Alguns poetas românticos imaginaram o homem como uma árvore que pensa, o sentido bucólico do pensamento. Uma árvore é muito isso, o sentido da existência, a iluminação no real, o conhecimento feito iniciação. Uma árvore é uma paisagem nascida no natural, a arte do “amor de Deus”, disse Rilke, a substância da vida feita eternidade. Quando o seu sobrinho nasceu Vincent Van Gogh pintou este quadro. Neste tempo talvez nos falte isso, o sinal das árvores em cada nascimento. 

Imagem: © – Vincent van Gogh, Branches with Almond Blossom, 1890 (Van Gogh Museum - Amsterdam). A Biblioteca deseja a todos um tempo feliz para estes dias de inverno e de esperança.