segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

O autor do mês - janeiro I


Os espaços de convívio eram um dos sinais do Porto e de muitas cidades há alguns anos. Conversava-se, discutia-se e encontravam-se pessoas muito diversas. Existia um certo sentido de comunidade. Hoje as comunidades são virtuais  o que significa que não são comunidades, pois as coisas, os seus nomes, as suas referências perdem-se ou ausentam-se se um sinal respirado, vivido. Nesse tempo o Porto tinha alguns espaços marcantes. O café Magestic ou o Guarani era um deles e não raras vezes descendo os espaços da cidade era possível encontrar figuras das letras e das artes.  

As Artes e as Letras era uma revista  que juntava admiradores e criadores de conteúdos culturais que divulgava algumas dessas ideias e produções artísticas.  às vezes um artista plástico dava corpo a um texto, a uma homenagem. No distante 2013 dedicou-se um desses números a Eugénio de Andrade.. H. Mourato deu forma a essa plasticidade das suas palavras. Estas palavras a Eugénio de Andrade são a celebração da sua poesia, mas também a memória do que foram cafés e tertúlias, onde tantas ideias , onde tantas ideias se ajuntaram para qualquer coisa mais belo. Algumas dessas palavras:

 "Com aquele semblante austero, aquele olhar levantado e distante quando era visto (ou quando se via) passar; com aquela solitária presença, protegido de silêncio ou mergulhado profundamente, com todos os sentidos, numa leitura absorvente, quem ousava romper uma tal serenidade ou quebrar essa muralha com que procurava proteger-se? E, no entatnto, bastava uma saudação amável ou até um sorriso apenas para "abrir a porta". (...)

 O halo da sua presença atraía e, com aquela sua voz inconfundivelmente amável e sedutora, quem quer que o ouvisse não podia deixar de ficar preso à sua musicalidade nem à sabedoria adivinhada em cada palavra ouvida. Mesmo não o conhecendo, pela sua voz, pela figura, era "alguém" invulgar. E era. Era o Poeta: o arquitecto exímio da palavra, com a qual era capaz de edificar palácios que resistirão ao tempo, ao mundo, aos homens, mesmo que os que por deficiência genética ou por ambição se tornam demolidores. 

 Quem o conheceu e lhe é leal não pode deixar de lembrá-lo como homem bom e cortês, afável, delicado, carinhoso, fiel, sem outra ambição que não fosse encontrar "uma sílaba, uma sílaba só...uma vogal, uma consoante, quase nada" e dar à sua vida a dimensão que pudesse ser pesada "num prato de balança" com um verso seu. Não sei de destino mais glorioso. Passou a vida toda a transformar a luz em canto. 

Que singularidade a vida e a existência deste ser comum que amou um lódão como uma criança, que louvou a heroicidade de Chico Mendes ou a memória de Ruy Belo por palavras que mais ninguém saberia harmonizar! (...) Quem te lê, sente que enlevas e elevas para onde só a poesia como a tua é capaz de transportar. Felizes aqueles que podem guardar no coração e em qualquer momento um verso teu.Isso fá-los-á estar sempre mais próximo do sol". 

    Imagem, a partir de uma escultura do mestre de artes plásticas, H. Mourato

 

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