As palavras são o material escrito na nossa humanidade ao estabelecermos uma relação com o real, ao nomearmos as coisas com que nos relacionamos. Elas formalizam o coração dessas coisas, a nossa respiração no real, onde realizamos a aventura humana feita de descoberta, por onde tentamos acrescentar uma linha, um olhar, o nosso corpo nos instantes.
Nas palavras
moram os gestos e as oportunidades de recriar a nossa memória e tocar o que
mais procuramos, a liberdade e a beleza dos gestos humanos. O que podem ser as
palavras? Quais são os seus limites na experiência humana? O que podemos fazer
com elas? É este um dos desafios iniciais proposto pela Biblioteca! Para
alimentar este pensamento, um texto de José Saramago:
"As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes, algumas palavras sugam-nos, não nos largam: são como carraças: vêm nos livros, nos jornais, nos “slogans” publicitários, nas legendas dos filmes, nas cartas e nos cartazes. As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas (harmoniosas) ou azedas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. Há muitas palavras.
E há os discursos, que são palavras encostadas umas às outras, em
equilíbrio instável graças a uma precária sintaxe, até ao prego final do Disse
ou Tenho dito. Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e fecham
sessões, se lançam cortinas de fumo ou dispõem bambinelas (cortinas) de veludo.
São brindes, orações, palestras e conferências. Pelos discursos se transmitem
louvores, agradecimentos, programas e fantasias.
As palavras deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que se não
oiça outra palavra. A palavra, mesmo quando não se afirma, afirma-se. A palavra
não responde nem pergunta: amassa. A palavra não mostra. A palavra
disfarça. Daí que seja urgente as palavras para que a sementeira se mude
em seara. Daí que as palavras sejam instrumento de morte – ou de salvação. Daí
que a palavra só valha o que valer o silêncio do ato.
Há
também o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio
escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a
terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem
sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e
as más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão."
José Saramago, Deste Mundo e do Outro (adaptação)
Sem comentários:
Enviar um comentário