sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Leituras...

As ideias podem fazer nascer mundos, criar possibilidades onde antes algo não compreendíamos, ou não pensávamos possível. As palavras não servem só para exprimir ideias, servem também para criar mundos, entender ou desvendar mistérios. A escrita não resulta quase nunca de uma inspiração, mas de um trabalho do pensar sobre essa essência interior de cada um. Valter Hugo Mãe criou com a sua obra, a possibilidade de amorosamente vermos no outro uma possibilidade de encontro.

 "O meu avô sempre dizia que o melhor da vida haveria de ser ainda um mistério e que o mais importante era seguir procurando. Estar vivo é procurar, explicava. Quase usava lupas e binóculos, mapas e ferramentas de escavação, igual a um detective cheio de trabalho e talentos. Tinha o ar de um caçador de tesouros e, de todo o modo, os seus olhos reluziam de uma riqueza profunda. Percebíamos isso no seu abraço. Eu dizia: dentro do abraço do avô. Porque ele se tornava uma casa inteira e acolhia-nos. (...)

Eu sei que ele queria chamar a atenção para a importância de aprender. Explicava sempre que aprender é mudar de conduta, fazer melhor. Quem sabe melhor e continua a cometer o mesmo erro não aprendeu nada, apensas acedeu à informação. Ele achava que dispomos de informação suficiente para termos uma conduta mais cuidada. Elogiava constantemente o cuidado. Era um detective de interiores, queria dizer, inspecionava sobretudo sentimentos. Quando lhe perguntei porquê, ele respondeu que só assim se falava verdadeiramente acerca da felicidade. Para estudar o coração das pessoas é preciso um cuidado cirúrgico. (...)

Nesse tempo, o meu avô perguntou-me quais seriam as mais belas coisas do mundo. Eu não soube o que dizer. (...) Ele sorriu da minha resposta e quis saber se não haviam de ser a amizade, o amor, a honestidade, e a generosidade. Ponderou se o mais belo do mundo não seria fazer-se o que se sabe e pode para que a vida de todos seja melhor. (...)

Eu entendi que o meu avô era como todas as mais belas coisas do mundo juntas numa só. E entendi que fazer-lhe justiça era acreditar que, um dia, alguém poderia reconhecer a sua influência em mim e, talvez, considerar de mim algo semelhante. Com maior erro ou virtude, eu prometi tentar. À noite, deito-me como uma semente na almofada húmida do coração. Fico aninhado com a esperança de crescer esplendorosamente por dentro do amor. No verdadeiro amor tudo é para sempre vivo. E sei que, como as pedras, vivo da sede.

Quero sempre inventar a vida."

As mais belas coisas do mundo / Valter Hugo Mãe. (2010). Lisboa: Alfaguara.

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