quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Um livro (II)

 É um dos centenários deste ano / mês, mas pouco se fala dele e, no entanto, é um escritor que nos deu palavras sobre tudo o que juntamos e somos, sons, cores, imaginação, sonhos, instantes. 

As cidades invisíveis é um dos seus grandes livros. Entre impérios, cidades, pessoas e pensamento existem cidades muito próximas de nós, como sonhos a emergir ou a desfalecer. O real confirma-nos todos os dias essas cidades que respiram os nossos desejos e as que os destroem, as que da sua pele se refazem e as que se reconstroem em anéis sucessivos como as árvores no bosque, em frente de uma multidão de garças, ou que se perdem no pó dos caminhos.

"As descrições das cidades visitadas por Marco Polo tinham esse dom: podia andar-se por elas com o pensamento, nelas podíamos perder-nos, para apanhar fresco, ou fugir a correr. Com o passar do tempo, nos relatos de Marco as palavras foram substituindo os objetos e os gestos: nomes isolados, áridos verbos, depois pedaços de frase, discursos ramificados (…)

Kublai Kan apercebera-se de que as cidades de Marco Polo eram todas parecidas, como se a paisagem de uma para a outra não implicasse uma viagem, mas sim uma troca de elementos. Agora, de todas as cidades que Marco lhe descrevia, a mente do Grão Kan partia por sua conta e risco, e desmontada a cidade peça a peça, reconstruía-a de outro modo, substituindo ingredientes, deslocando-os, invertendo-os. Marco continuava a informá-lo da sua viagem, mas o imperador já não o ouvia...

O Grão Kan contempla um império recoberto de cidades que têm peso sobre a terra e sobre os homens, a abarrotar de riquezas e de movimento (...), um império inchado, largo, pesado. “É o próprio peso que está a esmagar o império”, pensa Kublai, e nos seus sonhos agora surgem cidades leves como papagaios de papel, cidades perfumadas como rendas, cidades transparentes como mosquiteiros, cidades nervuras de folhas, cidades linhas da mão, cidades filigrana para ver através da sua opaca e fictícia espessura."

As cidades invisíveis / Italo Calvino. (2011). Lisboa: Leya.
Imagem: – Pieter Bruegel, Torre de Babel, 1563, Museu de História de Arte, Viena.

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