segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Um livro (II)

Haverá algum livro que emocione incondicionalmente, ou seja, um livro que, sendo lido repetidamente, se torne representativo de uma emoção autêntica?

 A partir de um texto de nota de pé de página, abaixo referenciado, podemos tentar dar uma primeira resposta no que respeita  ao problema das emoções em geral:

«Pelo jogo dos reflexos condicionais», as emoções «podem ligar-se às circunstâncias mais variadas, desde que estas circunstâncias sejam associadas à excitação incondicional um número suficiente de vezes, número que será tanto menos elevado quanto maior for a emoção».»» (Martinet M., Teoria das Emoções - Introdução à Obra de Henri Wallon, Moraes Editores, p. 79, nota de pé de página)

Por outras palavras, diz-se aqui que um determinado e suficiente do número [de associações] que será tanto menos elevado quanto maior for a emoção permite-nos solucionar o problema das emoções em geral, quantificando-as, condição sine qua non esta para que o desejo seja controlado pela razão, mais, para se representar o ponto crucial do processo da racionalização do desejo. Assim, o desenrolar das flutuações de ânimo, a dada altura, serão determinadas pelo exercício da proporcionalidade inversa. Como muitíssimo bem se sabe, por razão inversa entende-se uma relação entre duas quantidades tais que uma aumenta na mesma proporção em que a outra diminui. 

Na antiguidade, os clássicos, à sua maneira vates cultos e conceptistas, enfatizando o efeito conseguido pelo discurso, representavam a razão inversa mediante o binómio compreensão/extensão: assim, a ideia de que os termos complementares de uma relação balanceiam-se proporcional e hiperbolicamente, i. é, se a extensão de um termo aumenta, inversamente a compreensão do outro diminui e, se a compreensão aumenta, a extensão diminui.

Ora, a partir de um outro texto de nota de pé de página, referenciado, também se pode tentar dar uma resposta que diga respeito ao problema das emoções: a explicação fixa-se no (não) valor do significante - indeterminado, igualitário mas diferencial, imediato mas instantâneo, geral emoção livre, simpática afeição associável a um absoluto irracional, inatingível, indefinível, inefável, indizível, sem sentido nenhum, qualquer coisa (...) que, no próprio momento em que define as nossas ações, as impregna de ilusão -  enquanto possibilidade que a leitura deve tornar consciente. Significante usado como forma vazia, oca, para ulterior saturação por um conceito que se representa através de um certo emprego do imperfeito do indicativo: usança conceptualizada um número de tal maneira elevado de vezes associadas ao tempo passado perdido como fonte inesgotável de misteriosas tristezas que, consequentemente, assumirá a qualidade daquele tal livro enorme e que, sendo lido repetidamente, representará a emoção autêntica.

«Confesso que um certo emprego do imperfeito do indicativo - deste tempo cruel que nos apresenta a vida como qualquer coisa simultaneamente efémera e passiva, que, no próprio momento em que define as nossas ações, as impregna de ilusão, as dilui no passado sem nos deixar como o perfeito, o consolo da atividade - permaneceu para mim uma fonte inesgotável de misteriosas tristezas.» (Proust, M., O Prazer da Leitura, Editorial Teorema, p. 65, nota de fim de texto)

Admita-se pacientemente o apriorismo da escolha das duas notas aos textos acima referenciados apenas e justamente na medida em que aqui se tem a pretensão de se propor ao leitor/a estudante que, ao requisitar e levar tais livros para a singular carteira toda rodeada de verticais estantes, tal e qual como se fosse um/a náufrago/a que os salvasse consigo numa ilha deserta toda rodeada de portentosas ondas de maré, se contribua para que adquira o coadjuvante poder de todos os sentidos do universo emocional (des/re)montar e o sentido que cada mito transporta (des/re)materializar.

 Em síntese, a que livro havemos de associar condicionalmente a natureza do nada que é tudo da desejada emoção incondicional? Qual o livro incondicional, ou seja, frequente, mas irrepetível, para cada um de nós mítico? - Serão talvez 4 []: primeiramente o mestre; outro o todo eleito; na maior parte dos casos algum do projeto de leitura; 'Last but Not Least'o inventário da Biblioteca e Centro de Recursos Rómulo de Carvalho, da Escola Secundária José Saramago.

Professor António Santos

                                               Sobre a Leitura / Marcel Proust. (2020). Lisboa: Relógio D´Água.

Sem comentários:

Enviar um comentário