Haverá algum livro que emocione incondicionalmente, ou seja, um livro que, sendo lido repetidamente, se torne representativo de uma emoção autêntica?
«Pelo jogo dos reflexos condicionais», as emoções «podem
ligar-se às circunstâncias mais variadas, desde que estas circunstâncias sejam
associadas à excitação incondicional um número suficiente de vezes, número que
será tanto menos elevado quanto maior for a emoção».»» (Martinet
M., Teoria das Emoções - Introdução à Obra de Henri Wallon, Moraes
Editores, p. 79, nota de pé de página)
Por outras palavras, diz-se aqui que um determinado e suficiente do número
[de associações] que será tanto menos elevado quanto maior for
a emoção permite-nos solucionar o problema das emoções em geral,
quantificando-as, condição sine qua non esta para que o desejo
seja controlado pela razão, mais, para se representar o ponto crucial do
processo da racionalização do desejo. Assim, o desenrolar das
flutuações de ânimo, a dada altura, serão determinadas pelo exercício da
proporcionalidade inversa. Como muitíssimo bem se sabe, por razão inversa
entende-se uma relação entre duas quantidades tais que uma aumenta na mesma
proporção em que a outra diminui.
Na antiguidade, os clássicos, à sua maneira vates cultos e conceptistas,
enfatizando o efeito conseguido pelo discurso, representavam a razão inversa
mediante o binómio compreensão/extensão: assim, a ideia de que os termos
complementares de uma relação balanceiam-se proporcional e hiperbolicamente, i.
é, se a extensão de um termo aumenta, inversamente a compreensão do outro
diminui e, se a compreensão aumenta, a extensão diminui.
Ora, a partir de um outro texto de nota de pé de página, referenciado,
também se pode tentar dar uma resposta que diga respeito ao problema das
emoções: a explicação fixa-se no (não) valor do significante - indeterminado,
igualitário mas diferencial, imediato mas instantâneo, geral emoção livre,
simpática afeição associável a um absoluto irracional, inatingível,
indefinível, inefável, indizível, sem sentido nenhum, qualquer coisa (...) que,
no próprio momento em que define as nossas ações, as impregna de ilusão - enquanto
possibilidade que a leitura deve tornar consciente. Significante usado como
forma vazia, oca, para ulterior saturação por um conceito que se representa
através de um certo emprego do imperfeito do indicativo: usança
conceptualizada um número de tal maneira elevado de vezes associadas ao tempo
passado perdido como fonte inesgotável de misteriosas tristezas que,
consequentemente, assumirá a qualidade daquele tal livro enorme e
que, sendo lido repetidamente, representará a emoção autêntica.
«Confesso que um certo emprego do imperfeito do indicativo - deste
tempo cruel que nos apresenta a vida como qualquer coisa simultaneamente
efémera e passiva, que, no próprio momento em que define as nossas ações, as
impregna de ilusão, as dilui no passado sem nos deixar como o perfeito, o
consolo da atividade - permaneceu para mim uma fonte inesgotável de misteriosas
tristezas.» (Proust, M., O Prazer da Leitura, Editorial
Teorema, p. 65, nota de fim de texto)
Admita-se pacientemente o apriorismo da escolha das duas notas aos textos
acima referenciados apenas e justamente na medida em que aqui se tem a
pretensão de se propor ao leitor/a estudante que, ao requisitar e levar tais
livros para a singular carteira toda rodeada de verticais estantes, tal e qual
como se fosse um/a náufrago/a que os salvasse consigo numa ilha deserta toda
rodeada de portentosas ondas de maré, se contribua para que adquira o
coadjuvante poder de todos os sentidos do universo emocional (des/re)montar e o
sentido que cada mito transporta (des/re)materializar.
Professor António Santos
Sobre a Leitura / Marcel Proust. (2020). Lisboa: Relógio D´Água.
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