"Enchi a minha vida de erros e acertos. Erros são as certezas e acertos as interrogações. Fica a mudança. Essa velha doida que se apodera do tempo. É uma ilusão a permanência. O que há é apenas circunstância. cada dia é o princípio da invenção do mundo."
O Convento de Mafra e o Terramoto de Lisboa enquadram por diversas questões o século XVIII português. Decidido em 1711, e começado a sua construção em 1717, o convento marcou o reinado de D. João V e fala-nos muito da dimensão cultural e política do século XVIII. O Terramoto de 1755 foi um acontecimento marcante e a ele Luís Rosa dedicou um livro muito especial. Afinal a materialidade do património erigido de que modo imprime em si as ideias do seu tempo? O Tempo evolui e lê-lo no seu próprio tempo é quase pensar o futuro. Estas duas obras relacionam-se um pouco nessa dimensão. O Terramoto criou um novo pensamento, inventou um outro mundo e é sobre isso que fala este livro.
"O arquitecto era toda a gente debruçada na janela
da mudança. Há pessoas que não têm escolha. Têm de viver empurrados pelo
destino, encostados à esquina da vida. Era a vida toda feita de interrogações
imperfeitas que vinha ter com ele. Viveu entre dois tempos. O tempo dos mitos e
o tempo da razão, que se diz esclarecida. Tinha de ser, a um tempo, igual e o
contrário de si próprio. O homem mais livre de sonhar ideias e o mais
geométrico a realizá-las. Mas isso, todo o homem é um nómada de acertos e
desacertos.
Foi a invenção do mundo. Aquele ano durou muitos
anos, 1755. Ruiu tudo o que havia sido pensado até ali. Não foi só o abalo
inaudito que arrasou Lisboa, foi o travamento do pensamento que se desmoronou.
Debaixo do mundo dos mitos, dizia-se, brotara a luminosidade da razão. A razão
era o que ficava da lembrança de Deus. Sempre andamos à procura de
convicções. Quando umas se esvanecem, na contradição de si mesmas, inventamos
outras.(...)
Foi ele, o arquitecto, Eugénio dos Santos e Carvalho de seu nome completo, aquele que fez o projeto da reconstrução de Lisboa, foi ele que me ensinou que o homem é a invenção do mundo.
E eu pensava que o mundo aí estava, completo e acabado, num conjunto de regras e preceitos, infernos e paraísos, administrados pelo círculo da minha tonsura clerical. Éramos dois homens situados cada um num extremo indefinido do pensamento. O homem é esse extremo da criação que tem o direito de errar. E o dever de ir atrás do caminho e acertar. Digo bem. Ir atrás de ... Porque o certo e o desacerto estão para além de agir e da intenção. (...)
O mundo inventa-se quando o pensamento dá um salto para outra dimensão. Reinventa-se todos os dias. Mas há factos que rasgam a parcimónia do passado e gritam uma interrogação ao futuro. O terramoto foi isso. O início da invenção do mundo. Depois hão-de vir revoluções a julgar que tudo mudam. Ilusão. (...) O mundo muda quando uma ideia muda. (...)
'O caos é a forma apropriada da limitação. E a mudança o modo sucessivo de coabitar com o caos. Ao homem cabe evoluir até que a ordem predomine e a naturalidade do simples se traduza em perfeição. Por isso as coisas não são apenas coisas. são um percurso entre a perfeição e caos. (...9 Mas o espírito não é rectilíneo. E a arte reflete o espírito. Assim é. O futuro comportará todos os pontos de vista, coexistindo e tolerando-se. Saímos de uma época de vaidades a aparências. O tempo das convenções começa a chegar ao seu fim. É necessário refazer o espírito no alicerce da racionalidade'."
O Terramoto de Lisboa e a Invenção do Mundo / Luís Rosa. (2004). Lisboa: Editorial Presença.
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