quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Alberto Caeiro


"Quando vier a Primavera"

Quando vier a Primavera,

Se eu já estiver morto,

As flores florirão da mesma maneira

E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.

A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme

Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria

E a Primavera era depois de amanhã,

Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.

Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?

Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;

E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.

Por isso, se morrer agora, morro contente,

Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.

Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.

Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.

O que for, quando for, é que será o que é. " (1)

Fernando Pessoa criou múltiplos heterónimos. Será possível saber que foi o Fernando nascido em Lisboa e que foi poeta? E que heterónimo mais nos apela? Qual o que mais caracterizará essa criança nascida num dia de junho de 1888? Alberto Caiero (perdoem essa preferência) é uma das mais fascinantes criações de Pessoa. De algum modo el próprio o assumiu como seu mestre e se o fosse possível talvez o tenha querido ser. Ser Alberto Caeiro hoje será ainda um sinal de sabedoria. Mas quem o poderá ser numa sociedade globalizada, massificada, onde o individual se perde?

Alberto Caeiro é mais do que o poeta da Natureza, há nele uma metafísica que se ausenta em si, apenas pela possibilidade de absorver a materialidade do mundo pelos sentidos. Alberto Caeiro é uma representação de uma felicidade difícil de concretizar, quase no sentido em que os orientais a postularam.

As sensações, a cor das coisas, os cheiros, como única chave para se estar no mundo parece quase infantil, mas é de uma enorme sabedoria, um pouco como a ideia de grega do mundo como ordem, como beleza.

Alberto Caeiro nasceu, pelas palavras de Pessoa, de uma forma lúdica e ele à poesia contemporânea que, desde o final do século XIX, via na Natureza a redenção para um homem que se tinha deixado escravizar pelo económico e por uma sociedade longe de um coração. A Natureza aparecia poeticamente como redentora de possibilidades, situação que encontramos em Wordsworth, Thoreau ou em Walt Whitman.

Alberto Caeiro ultrapassa esta ideia de cura pela natureza, de alternativa a uma sociedade urbana doente. A Natureza, em Caeiro, é uma forma de apreender o mundo, um desenho de vida que se sabe suficiente por existir, como qualquer átomo, sem ter necessidade de valores preconcebidos, analisados pelo pensamento. É esse o fascínio de Caeiro, a apreensão do mundo como vindo de si, como uma realidade possível na sua respiração, atenta ao espanto inicial de descobrir o que lhe é dado ver. Há em Caeiro não uma religião, mas uma religiosidade pela imanência do ato de existir, o sagrado da vida. Caeiro é a versão mais otimista e mais espiritual de Fernando Pessoa.

Com Alberto Caeiro estamos mais perto da criação e da epifania como forma de sonhar. É essa epifania, que faz da arte uma matéria-prima do homem, que permite verificar o que se ausenta na nossa natureza, o que nos escapa numa curta existência. Caeiro chega a ser um ideal, um propósito de vida que é a “ciência de ver”, isto é, de verificar o que é distinto só por si, criando uma linguagem naquilo que ele considerava a energia observável do mundo, sem filosofia, sem pensamento. O livro de Caeiro divide os poemas essencialmente entre “O Guardador de Rebanhos”, “O Pastor Amoroso” e “Os Poemas Inconjuntos,” existindo ainda “Fragmentos” e “Poemas”, de atribuição incerta, e algumas prosas.

Pessoa, através de Caeiro, é do mais sublime que a criação humana pôs nas letras, no sentido de explicar a universalidade do homem. A genialidade e o seu mistério aguardam pois novos leitores, nos séculos imaginados dos sonhos que Pessoa nos deixou.

(1) - Poemas Inconjuntos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

Poema dito por Pedro Lamares


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