"Quando vier a Primavera"
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é. " (1)
Fernando Pessoa criou múltiplos heterónimos. Será possível saber que foi o Fernando nascido em Lisboa e que foi poeta? E que heterónimo mais nos apela? Qual o que mais caracterizará essa criança nascida num dia de junho de 1888? Alberto Caiero (perdoem essa preferência) é uma das mais fascinantes criações de Pessoa. De algum modo el próprio o assumiu como seu mestre e se o fosse possível talvez o tenha querido ser. Ser Alberto Caeiro hoje será ainda um sinal de sabedoria. Mas quem o poderá ser numa sociedade globalizada, massificada, onde o individual se perde?
Alberto Caeiro
é mais do que o poeta da Natureza, há nele uma metafísica que se ausenta em si,
apenas pela possibilidade de absorver a materialidade do mundo pelos sentidos.
Alberto Caeiro é uma representação de uma felicidade difícil de concretizar,
quase no sentido em que os orientais a postularam.
As sensações,
a cor das coisas, os cheiros, como única chave para se estar no mundo parece
quase infantil, mas é de uma enorme sabedoria, um pouco como a ideia de grega
do mundo como ordem, como beleza.
Alberto Caeiro
nasceu, pelas palavras de Pessoa, de uma forma lúdica e ele à poesia
contemporânea que, desde o final do século XIX, via na Natureza a redenção para
um homem que se tinha deixado escravizar pelo económico e por uma sociedade
longe de um coração. A Natureza aparecia poeticamente como redentora de
possibilidades, situação que encontramos em Wordsworth, Thoreau ou em Walt
Whitman.
Alberto Caeiro
ultrapassa esta ideia de cura pela natureza, de alternativa a uma sociedade
urbana doente. A Natureza, em Caeiro, é uma forma de apreender o mundo, um
desenho de vida que se sabe suficiente por existir, como qualquer átomo, sem
ter necessidade de valores preconcebidos, analisados pelo pensamento. É esse o fascínio
de Caeiro, a apreensão do mundo como vindo de si, como uma realidade possível na
sua respiração, atenta ao espanto inicial de descobrir o que lhe é dado ver. Há
em Caeiro não uma religião, mas uma religiosidade pela imanência do ato de
existir, o sagrado da vida. Caeiro é a versão mais otimista e mais espiritual
de Fernando Pessoa.
Com Alberto Caeiro
estamos mais perto da criação e da epifania como forma de sonhar. É essa
epifania, que faz da arte uma matéria-prima do homem, que permite verificar o que
se ausenta na nossa natureza, o que nos escapa numa curta existência. Caeiro
chega a ser um ideal, um propósito de vida que é a “ciência de ver”, isto é, de
verificar o que é distinto só por si, criando uma linguagem naquilo que ele
considerava a energia observável do mundo, sem filosofia, sem pensamento. O
livro de Caeiro divide os poemas essencialmente entre “O Guardador de
Rebanhos”, “O Pastor Amoroso” e “Os Poemas Inconjuntos,” existindo ainda
“Fragmentos” e “Poemas”, de atribuição incerta, e algumas prosas.
Pessoa,
através de Caeiro, é do mais sublime que a criação humana pôs nas letras, no sentido
de explicar a universalidade do homem. A genialidade e o seu mistério aguardam pois
novos leitores, nos séculos imaginados dos sonhos que Pessoa nos deixou.
(1) - Poemas Inconjuntos”. In Poemas de Alberto Caeiro.
Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de
Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).