quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Alberto Caeiro


"Quando vier a Primavera"

Quando vier a Primavera,

Se eu já estiver morto,

As flores florirão da mesma maneira

E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.

A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme

Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria

E a Primavera era depois de amanhã,

Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.

Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?

Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;

E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.

Por isso, se morrer agora, morro contente,

Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.

Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.

Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.

O que for, quando for, é que será o que é. " (1)

Fernando Pessoa criou múltiplos heterónimos. Será possível saber que foi o Fernando nascido em Lisboa e que foi poeta? E que heterónimo mais nos apela? Qual o que mais caracterizará essa criança nascida num dia de junho de 1888? Alberto Caiero (perdoem essa preferência) é uma das mais fascinantes criações de Pessoa. De algum modo el próprio o assumiu como seu mestre e se o fosse possível talvez o tenha querido ser. Ser Alberto Caeiro hoje será ainda um sinal de sabedoria. Mas quem o poderá ser numa sociedade globalizada, massificada, onde o individual se perde?

Alberto Caeiro é mais do que o poeta da Natureza, há nele uma metafísica que se ausenta em si, apenas pela possibilidade de absorver a materialidade do mundo pelos sentidos. Alberto Caeiro é uma representação de uma felicidade difícil de concretizar, quase no sentido em que os orientais a postularam.

As sensações, a cor das coisas, os cheiros, como única chave para se estar no mundo parece quase infantil, mas é de uma enorme sabedoria, um pouco como a ideia de grega do mundo como ordem, como beleza.

Alberto Caeiro nasceu, pelas palavras de Pessoa, de uma forma lúdica e ele à poesia contemporânea que, desde o final do século XIX, via na Natureza a redenção para um homem que se tinha deixado escravizar pelo económico e por uma sociedade longe de um coração. A Natureza aparecia poeticamente como redentora de possibilidades, situação que encontramos em Wordsworth, Thoreau ou em Walt Whitman.

Alberto Caeiro ultrapassa esta ideia de cura pela natureza, de alternativa a uma sociedade urbana doente. A Natureza, em Caeiro, é uma forma de apreender o mundo, um desenho de vida que se sabe suficiente por existir, como qualquer átomo, sem ter necessidade de valores preconcebidos, analisados pelo pensamento. É esse o fascínio de Caeiro, a apreensão do mundo como vindo de si, como uma realidade possível na sua respiração, atenta ao espanto inicial de descobrir o que lhe é dado ver. Há em Caeiro não uma religião, mas uma religiosidade pela imanência do ato de existir, o sagrado da vida. Caeiro é a versão mais otimista e mais espiritual de Fernando Pessoa.

Com Alberto Caeiro estamos mais perto da criação e da epifania como forma de sonhar. É essa epifania, que faz da arte uma matéria-prima do homem, que permite verificar o que se ausenta na nossa natureza, o que nos escapa numa curta existência. Caeiro chega a ser um ideal, um propósito de vida que é a “ciência de ver”, isto é, de verificar o que é distinto só por si, criando uma linguagem naquilo que ele considerava a energia observável do mundo, sem filosofia, sem pensamento. O livro de Caeiro divide os poemas essencialmente entre “O Guardador de Rebanhos”, “O Pastor Amoroso” e “Os Poemas Inconjuntos,” existindo ainda “Fragmentos” e “Poemas”, de atribuição incerta, e algumas prosas.

Pessoa, através de Caeiro, é do mais sublime que a criação humana pôs nas letras, no sentido de explicar a universalidade do homem. A genialidade e o seu mistério aguardam pois novos leitores, nos séculos imaginados dos sonhos que Pessoa nos deixou.

(1) - Poemas Inconjuntos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

Poema dito por Pedro Lamares


Fernando Pessoa - a multiplicidade do eu


 "Ainda assim, sou alguém. /Sou o Descobridor da Natureza (...)
Trago ao Universo um novo Universo / Porque trago ao Universo ele-próprio."

(Alberto Caeiro, "XLVI", Poesias - Heterónimos )

O apelido de Pessoa remete-nos para o teatro grego, as máscaras com que cada um pode enfrentar as dificuldades, os perigos, os desastres que envolvem a sociedade humana e que persistem acima de nós. Pessoa transporta-nos para essa noção de diversidade, de multiplicidade do individual. Ele é uma figura marcante da cultura europeia e mundial. Representa a procura de, num mundo coletivo, exprimir a voz do indivíduo, do seu olhar e das suas possibilidades.

 Fernando Pessoa foi influenciado por um conjunto de circunstâncias, as suas, as do seu tempo, que criaram nele um ambiente histórico onde já se determinavam as dificuldades do Portugal Contemporâneo. A saber, O "ultimatum inglês", a decadência da monarquia, as dificuldades de afirmação da República, a instabilidade política e social e os acontecimentos trágicos à volta de Sidónio Pais. A confirmação de um regime onde a dignidade do ser não existia assegurou-lhe um Portugal cinzento, sem visão, nem futuro. 

Fernando Pessoa soube criar uma poética que respondia à multiplicidade individual, oferecendo-nos a dimensão moderna, universal, do homem como medida de realização de um todo. Afinal o que pode ser a vida? Neste caminho em contínua aprendizagem, que dimensão nos pode transportar para uma felicidade mais próxima da respiração de cada um? Um trajeto baseado em sensações, nas perceções que por nos dão a materialidade do mundo, como em Alberto Caeiro, ou o modernismo tecnológico do mundo de Álvaro Campos, ou os constantes valores culturais da memória de Ricardo Reis? 

Afinal não são os heterónimos diferentes possibilidades de olhar para a afirmação do género humano nessa aventura que é viver? Em todo este complexo modo de ser, Pessoa afirmou-nos que é pela força das ideias que o País poderá ter a sua única possibilidade de se afirmar no mundo desenvolvido. A Mensagem, relato de feitos do passado, transporta-nos para essa ideia de um Quinto Império em que Portugal, para ser autónomo, diferente, melhor, terá de ser autêntico em si capaz de  assumir a sua verdadeira dimensão. 

Fernando Pessoa afirmou-se se modernista pela sua tentativa de transformar o futuro do País pelas ideias, pela arte, pela cultura, no sentido de cada indivíduo poder participar na construção de uma comunidade. Quantos governaram este País, inclusive no presente, se esqueceram deste simples princípio? Pessoa é um criador universal, pois ele soube pensar as diversas possibilidades do indivíduo, a sua multiplicidade, onde se encontram inscritos, os valores humanos. Afinal aquilo que poderemos ser em cada dia, num modo de re (construção) do presente quotidiano é uma das suas grandes ideias. 

Partindo de uma experiência individual, as suas palavras reforçam a nossa humanidade, como valor universal. O real apresenta-se a cada um, mas esses movimentos, nessa da espuma dos dias existe um  movimento mais profundo. Saber compreender esse movimento é antecipar a evolução da vida, é enquadrar formas mais dignas de sociedade, no modo em que Almada Negreiros e os modernistas o apresentaram. 

Tal como toda a Arte o exprime a vida feita apenas de existir é pouco. A imaginação e o delírio das possibilidades encontradas sobre o real é uma outra forma de encontrar uma dimensão mais consciente da vida. A genialidade de Fernando Pessoa é essa. A de revelar a necessidade de quebrar a incerteza que reina nestas praias em sucessivas gerações. Mariano Deida afirmou, que o poeta de autopsicografia inventou a própria literatura, não por ter inventado novas palavras, mas por nos revelar novas dimensões humanas. 

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Leituras...

 

As árvores e a natureza rodeiam-nos. Nas cidades tendem a diminuir. As culturas ameríndias sabiam que o desaparecimento delas era uma porta aberta para significativas dificuldades para a vida. A natureza e as árvores têm em si algo ainda mais substantivo para nós, a possibilidade de caminhar no natural. Caminhar com o natural é também um modo de descobrir e de construir formas de significado com a vida e de pensar a nossa relação com essa divindade exposta nas coisas.Henry David Thoreau fez da sua vida de caminhante a defesa dessa ideia de que a "a natureza é uma metáfora da mente humana." As árvores podem ter no humano uma ação de grande alcance para o equilíbrio do pensar e do sentir.
Thoreau viveu quando a América iniciava o processo de industrialização. Percebeu precocemente que uma sociedade de consumo materialista era um perigo, pois alterava no pior as verdadeiras necessidades do Homem. Este sem o mundo natural perde a sua espiritualidade, a sua ligação ao divino. A caminhada de Thoreau é física, pelos bosques e prados, mas é feita para se encontrar um rumo, uma existência construída em liberdade. E essa linha parece bem mais satisfatória que as contínuas "revoluções" que o mundo contemporâneo e os seus benfeitores parecem querer continuamente fazer!
Alguns breves excertos: "Quero dizer algumas palavras em nome da Natureza, da liberdade absoluta e do estado selvagem, por contraste com a liberdade e a cultura meramente civilizadas, com o intuito de ver no homem um habitante, uma parte ou uma parcela da Natureza, e não um mero membro da sociedade. (...)
Desde os primórdios, a natureza fez crescer os minúsculos rebentos da floresta apenas rumo ao céu, acima das cabeças dos homens e longe da sua vista. Vemos somente as flores que pisamos nos prados.Uma paisagem nunca vista é uma grande felicidade, e em cada volta há sempre algo novo. Há, de facto, uma certa consonância entre os recursos da paisagem num raio de dez milhas, ou seja, nos limites de uma caminhada vespertina, e a sétima década da vida de um homem. Nunca as conhecereis bem."

Caminhada /  Henry-David Thoreau. (....) . Lisboa: Antígona.

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Livros do mês - novembro - IV

 

"Aqui, e em todo o mundo (civilizado, é claro) a humanidade foi submetida a uma operação ditatorial que todos acolhem voluntariamente. Que estarão a fazer as pessoas nas suas casas, segregadas, com as janelas fechadas, sem darem sinais de vida?" (Memórias)

Quem o conheceu sente-lhe a saudade da sua presença imensa, da sua voz ligeiramente grave adoçada de gestos de simpatia. Sente a falta de uma companhia que ensinava muito, numa humildade inesquecível. Ele deixou-nos lições de mestria sobre o que significa a cidadania, o que podemos individualmente fazer com as ideias, com o que sentimos em eternas viagens entre a Ciência e a Poesia, a nossa humanidade. Ensinou-os com o seu exemplo, com a sua memória que somos o que fazemos, o que pensamos, sem grande esperança por uma condição humana que tantas vezes se deixa governar por um conjunto de ilusões.

Memórias é um pouco isto e é um livro que nos concede a respiração da liberdade de quem se guiou pela dignidade e pela beleza, servidas pela ironia e simplicidade. Na leitura, fração limitada das palavras aspiramos docemente a grandeza humilde de um grande ser. O renascimento nas ideias, a experimentação material do real em lições de simplicidade e saber.
O mundo já não procura mestres e ele apenas quis ser algo real e digno para com a vida. Foi um desses seres que ensinam pelo simples prazer de conhecer e questionar o que não sabemos. O conhecimento e o saber como meditação e testemunho da nossa "humanidade" é a memória que Rómulo nos deixa, enquadrado numa ética natural de uma raridade que nos contempla e nos engrandece.
Ser um pensador, um poeta, um homem de conhecimento e de cultura, sem ser um intelectual, onde adivinhamos uma curiosidade alegre pela descoberta, foi o seu grande testemunho. Descobrimos nas suas Memórias um retrato de um País cinzento e uma contemplação pelas misérias humanas, na mesma grandeza com que descobria os átomos. Em Memórias, Rómulo de Carvalho estabelece com o leitor uma conversação, num "movimento perpétuo" pelo prazer imenso de saber e conhecer.

Livros do mês - novembro III

 


"Eu queria que o Amor estivesse realmente no coração,

e também a Bondade,
e a Sinceridade,
e tudo, e tudo o mais, tudo estivesse realmente no coração
Então poderia dizer-vos:
"Meus amados irmãos,
falo-vos do coração",
ou então:
"com o coração nas mãos".

Mas o meu coração é como o dos compêndios
Tem duas válvulas (a tricúspide e a mitral)
e os seus compartimentos (duas aurículas e dois ventrículos).
O sangue a circular contrai-os e distende-os
segundo a obrigação das leis dos movimentos.

Por vezes acontece
ver-se um homem, sem querer, com os lábios apertados
e uma lâmina baça e agreste, que endurece
a luz nos olhos em bisel cortados.
Parece então que o coração estremece.
Mas não.
Sabe-se, e muito bem, com fundamento prático,
que esse vento que sopra e ateia os incêndios,
é coisa do simpático.
Vem tudo nos compêndios.

Então meninos!
Vamos à lição!
Em quantas partes se divide o coração?"
António Gedeão. (2022). "poema do coração", in Poemas Escolhidos. Lisboa: Glaciar.

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Dia nacional da cultura científica - Rómulo de Carvalho e António Gedeão

 Rómulo de Carvalho

 Acessível no link acima - "Rómulo de Carvalho - O príncipe perfeito" e por QR Code sobre António Gedeão que incorpora o ficheiro acima.
 

Literacia da Informação - sessão 2

 A informação inunda-nos de possibilidades. Nas nossas mãos caem bibliotecas inteiras de dados. Como as usar para criar algo que passe da informação ao conhecimento?

Como partir de um tema e organizar a informação? Como escolher o que se encontra e torná-lo pessoal? Todas as fontes são legítimas, ou precisam de ser verificadas? As informações que usamos como as citamos?
Partindo para a realização de um texto biográfico sobre a obra e a figura de Fernando Pessoa desenvolveu-se uma atividade que procura ser uma experiência de literacia de informação com um conjunto de alunos - 12.º E. Pensar sobre a informação, mesmo limitadamente, pois no caso de Fernando Pessoa, ele próprio é um universo é construir uma ideia pessoal. A capacidade de pensar alimenta-se muito dessa construção individual do refletir sobre algo.

Dia Mundial da Filosofia

 

 

"Na quinta-feira , dia 16 de novembro de 2023, comemorou-se o «Dia Mundial da Filosofia», na Biblioteca Escolar da nossa Escola, com a realização de uma exposição intitulada «Filosofia Prática». Tendo a mesma, consistido na exposição de livros relacionados com duas vertentes da Filosofia Prática, nomeadamente, Filosofia para Crianças e Jovens e Aconselhamento/Consultoria  Filosófico. E na exposição de textos alusivos às temáticas supracitadas. Esta exposição foi concretizada pela docente Carla Estêvão enquanto professora do Departamento de Filosofia e membro da equipa da Biblioteca Escolar da Escola Secundária José Saramago - Mafra"

Leituras...


"Nenhum homem de nenhuma geração viu, nem explorou tantas maravilhosas coisas do mundo, como o fez o senhor Marco Polo..."


O mundo tornou-se pequeno. A viagem é uma fonte de aprendizagem e no desejo de tudo cartografar e de pouco conhecer o mundo perdeu muito mistério, pois a surpresa nos instantes é hoje esquecida.
Viagens de Marco Polo, chamado Livro das Maravilhas conta-nos uma viagem ao interior da Ásia mais remota. Conduzidos pela ideia da descoberta e de encontrar formas de apoiar o comércio de Veneza no Mediterrâneo oriental chegaram a locais tão distantes como o Mar Negro, a Mongólia ou a China. Contactaram a Pérsia e a Arménia chegando à presença do Grande Khan, imperador chinês. Este confiando em Marco Polo confiou-lhe missões diplomáticas em terras distantes. Marco Polo foi o primeiro ocidental a chegar tão longe e a ter uma proximidade tão íntima com extensas áreas do Oriente.
Calvino criou um livro maravilhoso já aqui referido, onde colocou Marco Polo e Hublai Khan a falar sobre as cidades invisíveis de famosos reinos. Livro das Maravilhas de Marco Polo faz-nos lembrar uma outra viagem, a de Fernão Mendes Pinto e a sua Peregrinação. É desconcertante a diferença, pela partida com diferentes motivações e de resultados tb diversos.
Livro das Maravilhas é ainda um grande livro pela lição civilizacional que nos oferece para os tempos de hoje. A sua mensagem de tolerância e curiosidade pelo mundo é ainda algo que devemos valorizar. Maravilhas do Mundo é ainda e talvez isso seja o mais importante, uma clara confiança no homem como construtor de cidades, de civilizações de trocas, de memórias, de sinais, de nomes, onde se reconhecem formas multiculculturais do viver humano.

Os livros e as memórias têm consigo grandes sinais de futuro.
Viagens / Marco Polo. Lx: Assírio e Alvim, 2012.

Leituras...

"Enchi a minha vida de erros e acertos. Erros são as certezas e acertos as interrogações. Fica a mudança. Essa velha doida que se apodera do tempo. É uma ilusão a permanência. O que há é apenas circunstância. cada dia é o princípio da invenção do mundo."

O Convento de Mafra e o Terramoto de Lisboa enquadram por diversas questões o século XVIII português. Decidido em 1711, e começado a sua construção em 1717, o convento marcou o reinado de D. João V e fala-nos muito da dimensão cultural e política do século XVIII. O Terramoto de 1755 foi um acontecimento marcante e a ele Luís Rosa dedicou um livro muito especial. Afinal a materialidade do património erigido de que modo imprime em si as ideias do seu tempo? O Tempo evolui e lê-lo no seu próprio tempo é quase pensar o futuro. Estas duas obras relacionam-se um pouco nessa dimensão. O Terramoto criou um novo pensamento, inventou um outro mundo e é sobre isso que fala este livro.

"O arquitecto era toda a gente debruçada na janela da mudança. Há pessoas que não têm escolha. Têm de viver empurrados pelo destino, encostados à esquina da vida. Era a vida toda feita de interrogações imperfeitas que vinha ter com ele. Viveu entre dois tempos. O tempo dos mitos e o tempo da razão, que se diz esclarecida. Tinha de ser, a um tempo, igual e o contrário de si próprio. O homem mais livre de sonhar ideias e o mais geométrico a realizá-las. Mas isso, todo o homem é um nómada de acertos e desacertos.
Foi a invenção do mundo. Aquele ano durou muitos anos, 1755. Ruiu tudo o que havia sido pensado até ali. Não foi só o abalo inaudito que arrasou Lisboa, foi o travamento do pensamento que se desmoronou. Debaixo do mundo dos mitos, dizia-se, brotara a luminosidade da razão. A razão era o que ficava da lembrança de Deus. Sempre andamos à procura de convicções. Quando umas se esvanecem, na contradição de si mesmas, inventamos outras.(...) 

Foi ele, o arquitecto, Eugénio dos Santos e Carvalho de seu nome completo, aquele que fez o projeto da reconstrução de Lisboa, foi ele que me ensinou que o homem é a invenção do mundo. 

E eu pensava que o mundo aí estava, completo e acabado, num conjunto de regras e preceitos, infernos e paraísos, administrados pelo círculo da minha tonsura clerical. Éramos dois homens situados cada um num extremo indefinido do pensamento. O homem é esse extremo da criação que tem o direito de errar. E o dever de ir atrás do caminho e acertar. Digo bem. Ir atrás de ... Porque o certo e o desacerto estão para além de agir e da intenção. (...)

 O mundo inventa-se quando o pensamento dá um salto para outra dimensão. Reinventa-se todos os dias. Mas há factos que rasgam a parcimónia do passado e gritam uma interrogação ao futuro. O terramoto foi isso. O início da invenção do mundo. Depois hão-de vir revoluções a julgar que tudo mudam. Ilusão. (...) O mundo muda quando uma ideia muda. (...)

'O caos é a forma apropriada da limitação. E a mudança o modo sucessivo de coabitar com o caos. Ao homem cabe evoluir até que a ordem predomine e a naturalidade do simples se traduza em perfeição. Por isso as coisas não são apenas coisas. são um percurso entre a perfeição e caos. (...9 Mas o espírito não é rectilíneo. E a arte reflete o espírito. Assim é. O futuro comportará todos os pontos de vista, coexistindo e tolerando-se. Saímos de uma época de vaidades a aparências. O tempo das convenções começa a chegar ao seu fim. É necessário refazer o espírito no alicerce da racionalidade'."

O Terramoto de Lisboa e a Invenção do Mundo / Luís Rosa. (2004). Lisboa: Editorial Presença.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Leituras...

 

Nomear as coisas, sentir a ligação entre o mundo em que vivemos e o nosso próprio eu é uma das formas de conexão ao real. Os limites do nosso mundo são os limites da nossa linguagem, como disse Wittgenstein e assim, de que forma o digital limita aquilo que é o nosso conhecer, a capacidade de construir uma relação afetiva com as coisas.?
"A ordem terrena, a ordem da Terra, consiste em coisas que adquirem uma forma duradoura e que criam um ambiente estável para habitar. Hoje, a ordem terrena está a ser substituída pela ordem digital. Hoje encontramo-nos na transição da era das coisas para a era das não coisas. Não são as coisas, mas as informações que determinam o mundo em que vivemos. O mundo torna-se cada vez mais incompreensível e espectral. Nada é firme e palpável. As coisas são pontos de repouso da vida. Hoje em dia estão totalmente cobertas de informações, que são tudo menos pontos de repouso da vida."


Não-Coisas / Han, Byung-Chul. (2022). Lisboa: Relógio D´Água.

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Livros do mês - novembro II

 

II

 

"O meu olhar é nítido como um girassol.

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de vez em quando olhando para trás...

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem...

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras...

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo...

 

Creio no Mundo como num malmequer,

Porque o vejo. Mas não penso nele

Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele

(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

 

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...

Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,

Mas porque a amo, e amo-a por isso,

Porque quem ama nunca sabe o que ama

Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

 

Amar é a eterna inocência,

E a única inocência é não pensar..."


8.3.1914

"O Guardador de Rebanhos", in Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. Lisboa. Relógio d´Água.

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Dia Mundial da Filosofia

 

Como se chega ou se incentiva o pensamento filosófico? Como se obtém a capacidade de construir um pensamento e interrogar o que nos rodeia? É possível nascer como filósofo ou aprende-se com o tempo, com o que estudamos, com a experiência do que vamos tendo na vida? Se todos poderiam ser filósofos, no sentido de colocar questões ao que não se compreende por que alguns deixam de o ser ao longo da vida? Como se incentiva a formulação das perguntas deixadas por culturas ancestrais, onde a vida foi pensada como uma visão, uma possibilidade? Pode essa abordagem à vida ser incentivada e a partir de quando e terá um limite, ou poderá ter a temporalidade da respiração de cada um? Não é tantas vezes o pensamento, a capacidade de formular uma questão um desenho de belo sobre as coisas?
Michel Onfray dá-nos algumas pistas.

"Penso realmente que nós nascemos filósofos e só alguns o continuam a ser. Há uma grande razão nas crianças que perguntam "porquê". Querem saber. Porque é que a noite é negra, porque é que a água molha, ou porque é que as pessoas morrem. As crianças colocam grandes questões de Ontologia, de Metafísica, de Filosofia.
E muitas vezes os pais renunciam a responder porque não têm, forçosamente, os meios intelectuais, ou o tempo. Por vezes dizemos: não sei, mas vamos encontrar numa biblioteca, vamos procurar num livro. Depois, há um momento, em que as pessoas acabam por renunciar a responder às questões. E desde que se entra na escola, pede-se que cada um responda a questões que nunca nos foram colocadas.

E dizem-nos: agora, se quiseres ser um bom aluno deves saber qual é o PIB de um país qualquer. Naturalmente ninguém é levado a colocar-se essa questão. Aprendemos na escola, coisas muitas vezes, pouco significativas. Dizem-vos: as questões que te colocaste cessa de as colocar. Em troca aprende as respostas a questões que tu raramente te colocas.
Efetivamente isso desespera um certo número de indivíduos e alguns resistem a isso. E esses que resistem a isso, dizem:
- Eu persisto com as minhas questões, eu quero as minhas respostas. Vou procurá-las. Ora bem, esses são os naturais filósofos. E em seguida, podem tornar-se filósofos de profissão porque terão aprendido na Universidade. E colocarão as questões, quem pensou o quê, quando, como, de que forma. E depois disso, um dia talvez, uma destas pessoas que exerceu o pensamento, que se questionou possa escrever livros de Filosofia, possa ser um Filósofo no sentido académico porque se pôs a questão fundamental: o questionamento do sentido da vida."

Michel Onfray, La Grande Librairie. Magazine Littéraire. TV5. 2013.
O pensador de Rodin. Musée Rodin, 1904.

Dia do Patrono da Escola

 Parabéns José Saramago!


"Com a mesma veemência com que reivindicamos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa tornar-se um pouco melhor.” (1)

Integrado no dia do patrono da ESJS diversas turmas puderam evocar o nascimento de José Saramago. Fui visionado o filme A Jangada de Pedra e apresentadas algumas ideias a discussão como os direitos e os deveres se relacionam com o significado de ser humano. Foram lidos alguns excertos de palavras de José Saramago e pensada a questão do valor das palavras na sua relação com o real e com o virtual e dos significados do que significa construir a Democracia.
 

(1) - Saramago, J. (2014, 10 de dezembro), discurso do banquete do Nobel, em 10.12.1998.
Fonte: Fundação José Saramago.

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Livros mais requisitados: outubro

 



Os três livros mais requisitados em outubro


Os livros do mês - novembro

 

“Às vezes pergunto-me se certas recordações são realmente minhas, se não serão mais do que lembranças alheias de episódios de que eu tivesse sido actor inconsciente e dos quais só mais tarde vim a ter conhecimento por me terem sido narrados por pessoas que neles houvessem estado presentes, se é que não falariam, também elas, por terem ouvido contar a outras pessoas. Não é esse o caso daquela escolinha particular, num quarto ou quinto andar da Rua Morais Soares, onde, antes de termos ido viver para a Rua dos Cavaleiros, eu comecei a aprender as primeiras letras. Sentado numa cadeirinha baixa, desenhava-as lenta e aplicadamente na pedra, que era o nome que então se dava à ardósia, palavra demasiado pretensiosa para sair com naturalidade da boca de uma criança e que talvez nem sequer conhecesse ainda. É uma recordação própria, pessoal, nítida como um quadro, a que não falta a sacola em que acomodava as minhas coisas, de serapilheira castanha, com um barbante para levar a tiracolo. Escrevia-se na ardósia com um lápis de lousa que se vendia em duas qualidades nas papelarias, uma, a mais barata, dura como a pedra em que se escrevia, ao passo que a outra, mais cara, era branda, macia, e chamávamos-lhe «de leite» por causa da sua cor, um cinzento-claro, tirando a leitoso, precisamente. Só depois de ter entrado no ensino oficial, e não foi nos primeiros meses, é que os meus dedos puderam, finalmente, tocar essa pequena maravilha das técnicas de escrita mais actualizadas.”

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

A queda do muro de Berlim

 

Duas nações entre as quais não há relacionamento, nem simpatia; que ignoram de tal forma os hábitos, pensamentos e sentimentos da outra parte que parecem habitantes de planetas diferentes. Os ricos e os pobres.» (1)

 Vivemos tempos em que a memória é pouco relevante na construção dos dias e como sociedade perdemos a noção do valor que gerações emprestaram às suas lutas por uma sociedade decente, onde os valores humanos representavam a marca de gerações pelo bem comum. Esta descontinuidade com o passado é uma das causas para este olhar passivo para a desigualdade social e lidamos com indiferença, perante as dificuldades de muitas pessoas. É por isso essencial relembrar a História.

 O Muro de Berlim é um dos marcos mais importantes da História Contemporânea, pois tem nele o simbolismo de um mundo dividido, após o fim da segunda guerra mundial, onde dois modos de ver o mundo eram tão demarcados no quotidiano. Os traços essenciais.

 Até 1961 os habitantes de Berlim, os Berlinenses tinham acesso a circular livremente dentro da sua cidade. Fruto da guerra fria e da migração dos habitantes de Berlim Oriental para ocidente, aquela iniciou a construção de um muro a treze de agosto de 1961.  A sua construção dividiu ruas, prédios, separou famílias em poucas horas, tinha torres eletrificadas, protegidas com arame farpado e vigiava todo o seu extenso espaço com cerca de trezentos postos guardados por soldados.

 O Muro representou o pior de um mundo que não respeitava a liberdade individual das pessoas, a sua humanidade perante um Estado policial que segregava os seus cidadãos. Os anos oitenta assistiram ao colapso de uma sociedade que impedia o indivíduo de participar criativamente na organização do seu presente. A ideia de que o Estado poderia regular, tudo, do nascimento à morte veio confirmar o absurdo de um modelo social e político. Os suportes dos regimes a leste, apoiados numa indústria obsoleta e excessivamente ligada à produção de equipamentos militares não souberam resistir às mudanças que foram surgindo. Da União Soviética, à Polónia e à Hungria o sistema socialista revelou-se incapaz de impedir uma mudança.

A 9 de Novembro de 1989, o mundo assistiria à queda de um muro, consequência da vontade de tantos alemães a leste de se mudarem para a parte oeste, processo que se verificou incontrolável. O fim do muro representou o fim de uma hostilidade entre dois blocos e a abertura para um mundo mais livre e mais participativo. Em 1990, as duas Alemanhas iriam-se juntar formando um único País. Mas persistem demasiados muros, erguidos por uma cegueira fundamentalista sem memória. O Muro abriu uma porta que a classe política europeia não soube aproveitar.

Na queda do muro de Berlim participaram, lutaram, viveram e morreram gerações de homens e mulheres que acreditaram na liberdade individual como forma e expressão do desenvolvimento humano e como este é inseparável de uma procura de nivelação igualitária cultural e social. O Muro de Berlim é hoje, quase um vestígio do que foi a História da Europa e do Mundo, mas ainda é uma lição para os que se esquecem de como os movimentos sociais são desenvolvidos e alimentados por sonhos individuais.

 (1) Benjamin Disraeli, citado por Jean- Pierra Lehhman

Leituras...

 

"Ontem à tarde, apaixonei-me por uma árvore. Passa os seus dias na berma de uma estrada regional, a uma dezena de quilómetros daqui. A sua folhagem cobre uma parte da estrada. Ao atravessar a sombra que projeta, levantei a cabeça, olhei para os seus ramos como ao entrar numa igreja os olhos se dirigem por instinto para a abóbada. A sua sombra era mais quente do que a das igrejas. Uma das experiências mais delicadas da vida é a de caminhar com alguém pela natureza, falando de tudo e de nada. A conversa mantém os passeantes junto a si próprios, e por vezes algo da paisagem impõe o silêncio, impõe sem constrangimentos. O aparecimento dessa árvore fez surgir em mim um silêncio de completa beleza. Durante alguns instantes não tinha nada a pensar, a dizer, a escrever e até, sim, nada mais a viver. Fui levantado alguns metros acima do solo, carregado como uma criança nos braços verdeescuro, iluminados pelas sardas do sol. Durou alguns segundos e esses segundos foram longos, tão longos que um dia depois duram ainda. O que aconteceu ontem preencheu-me. Parece-me vão querer a repetição. Num punhado de segundos, essa árvore deu-me alegria suficiente para os próximos vinte anos - pelo menos.
Olho este caderno, apenas escrevi a data, levanto a cabeça, um pardal bate as asas no céu, e já está: a minha página está escrita, o pássaro acabou de levar o dia inteiro nas suas asas."
Bobin, C. (2022). Auto-retrato com radiador. Porto: Flaneur.

Auto-Retrato com radiador / Christian Bobin. (2020). Porto: Flâneur.

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Leituras...

O mundo é um vazio desmedido que não queremos nem podemos aceitar, os homens também, as cidades, os países, os planetas também. Não há palavras que encham tanto vazio. Os livros que deixamos são obras de filigrana, fios ténues do sentido com que delimitamos o volume do que não entendemos."

No meu peito não cabem pássaros junta três figuras maiores da Literatura do século XX, justamente, Franz Kafka, Jorge Luís Borges e Fernando Pessoa.  Junta-as a partir da leitura da vida que se constrói, de um imigrante em Nova Iorque, de um rapaz que chega a Lisboa e de uma criança que inventa coisas, formas de anunciar o que acontecerá mais tarde.

 No meu Peito não batem Pássaros realiza a narrativa de três figuras a descobrirem espaços urbanos, a carregar sonhos maiores que eles, a compor palavras com a linha comum de inventar um mundo. É um livro sobre criadores, é um livro sobre cidades e ainda um livro sobre três figuras que entre a solidão e a desilusão nos definem o assombro das palavras, a linguagem para compor aquilo que é a vida de milhões, o prenúncio do mundo moderno.

 No meu Peito não batem Pássaros fala-nos da vida, da memória, da morte, do esquecimento, entre os caminhos que percorremos, com o sol a nascer em nós. A infância, o consolo das histórias vividas e inventadas entre os que no tempo forjaram o azul de um aconchego e nos deram a visão de um caminho.

 Livro imenso, uma sabedoria de palavras, momentos intermitentes que nos dão a linha dos olhos que procuramos para recuperar a beleza, o encontro com a respiração do amor. Ainda esse sonho antigo que nos faça ser um ponto brilhante nos dias esquecidos. A beleza e o sorriso entre as cicatrizes que nos caracterizam, que nos rasgaram o espírito e o corpo até chegar ao encontro, à mão, ao perfume solar capaz de nos fazer render um novo salto, a dos pássaros que em nós voam.

                  No meu peito não cabem pássaros / Nuno Camarneiro. (2013). Lisboa: D. Quixote.

terça-feira, 7 de novembro de 2023

Literacia - A gente não lê


A Gente não lê (Poema e Canção deRui Veloso e Carlos Tê)

"Ai, senhor das furnas
Que escuro vai dentro de nós
Rezar o terço ao fim da tarde
Só pra espantar a solidão
E rogar a Deus que nos guarde
Confiar-lhe o destino na mão

Que adianta saber as marés
Os frutos e as sementeiras
Tratar por tu os ofícios
Entender o suão e os animais
Falar o dialeto da terra
Conhecer-lhe o corpo pelos sinais

E do resto entender mal
Soletrar, assinar em cruz
Não ver os vultos furtivos
Que nos tramam por trás da luz

Ai, senhor das furnas
Que escuro vai dentro de nós
A gente morre logo ao nascer
Com olhos rasos de lezíria

De boca em boca passando o saber
Com os provérbios que ficam na gíria 

De que nos vale esta pureza
Sem ler fica-se pederneira
Agita-se a solidão cá no fundo
Fica-se sentado à soleira
A ouvir os ruídos do mundo
E entendê-los à nossa maneira

Carregar a superstição
De ser pequeno ser ninguém
E não quebrar a tradição
Que dos nossos avós já vem"
 

Maracador digital - literacia da informação


 Marcador Digital - Literacia da Informação

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Literacia de informação - modelo para usar

 


Partilha-se no link abaixo uma ficha de utilização prática de um modelo de literacia de informação.

Ficha de utilização - modelo de literacia

Evocação de Sophia

 

"Iremos juntos pela praia
Embalados no dia
Colhendo algas rochas e corais
Que na praia deixou a maré cheia

As palavras que disseres e que eu disser
Serão somente as palavras que há nas coisas
Virás comigo desumanamente
Como vêm as ondas com o vento

O belo dia liso como um linho
Interminável será sem um defeito
Cheio de imagens e de conhecimento (1)

Sophia foi, é alguém que é uma fonte de inspiração para nos fazer entrar num mundo, um reino muito especial. O reino de palavras, de ideias tecidas na procura de uma claridade, de uma luz que antecedam as sombras do mundo. As palavras como ferramenta para conhecer a claridade da azul-respiração das coisas, entre o vento e o mar, na construção de um cosmos que emerge do caos e nos dá o essencial da essência humana.

Sophia é uma das grandes figuras da literatura portuguesa dos últimos cem anos. Sophia de Mello Breyner Andresen, que fez da sua vida um encantamento por esse amor antigo e futuro de todas as ideias, concedeu-nos as palavras da pura claridade, o dia inicial criado do caos para nos harmonizar com o real. Sophia é um nome, uma paisagem, uma forma de olhar que tem inspirado sucessivas gerações a descobrir no real, uma forma de divindade por onde a sua palavra respira assombrada pela sua essência de simplicidade. Deu-nos uma respiração de coral e nela vemos a tão difícil, mas tão necessária, dimensão da autenticidade nos gestos e nas palavras.

 As palavras são, em Sophia, não uma descrição planeada ou imaginada do real, mas sim a descrição do olhar, o concreto onde sobressai a nossa dimensão humana. Com a sua arte poética e narrativa, temos uma escrita muito preocupada com os limites da existência humana, de onde emerge em simplicidade um encontro com a Natureza e em especial com o mar. Encontros de natureza diversa, de onde emergem os gregos e a sua aventura pelo conhecimento da inteligibilidade do mundo, os seus mitos. Por esse mar de casas brancas, onde o sonho, a descoberta de novos horizontes, o puro descobrimento, na ideia grega (altheia) de dar ao real um significado divino.

Sophia deu-nos uma obra literária marcada pela poesia, pelos contos, onde fez nascer um imaginário de conhecimento das imagens que nos levam ao real, à procura de uma essência do humano.

Da sua obra, destacam-se a poesia, como forma primeira de uma expressão da palavra, na respiração do mundo, e os contos, em que muito do seu imaginário foi levado a crianças mais jovens. Na poesia, publicou diversos títulos, como, No tempo divididoCoralNavegaçõesIlhasO nome das coisas, onde o deslumbramento pela palavra, a extrema sensibilidade e clareza tentam encontrar campos e horizontes de felicidade, numa procura de uma dimensão humana que se pretende afirmar acima de qualquer tempo.  

A luz que ela nos deu é clara e transparente como as manhãs nascidas de um tempo novo, não numa dimensão política, da usura de títulos, mas a de uma nobreza feita da que procura dialogar consigo própria, a da manhã branca, onde a claridade emerge de um dia alvo, desenhado e vivido de possibilidades que o real nos concede. As suas palavras deram-nos uma estética do maravilhoso, de quem se espanta pelo assombro do mundo, pela sua beleza e injustiça, num compromisso autêntico, livre e sublime, com a respiração que nos pode fazer herdeiros da maior inteireza possível. 

Sophia, viveu ela própria o sonho, aspirou por ele, lutou por ele, sonhou com esse dia novo, com essa construção substantiva do tempo, das ideias nobres, simples, da reconquista apenas por si, pelo movimento, pela graça, retirando as máscaras e desbravando no caos, a pureza inicial do homem. Sonhou com esse movimento de levitação, o sonho que uma “revolução” permitiria. Não a de ideias passadas, de caminhos de glória, mas a escrita no coração, a partir da página em branco, onde cada respiração e olhar vê o dia e o mar em absoluto maravilhamento.

 Conduziu-nos pela maresia, falou-nos dessa primeira liberdade, correu com o vento para que nós também sentíssemos a questão inicial, o sopro vivo da palavra comprometida. Infelizmente, nós não a compreendemos e temos muitos exemplos desta destruição pelo valor da palavra, onde a construção de uma comunidade se vê isolada da sua substância mais vital. Resta-nos com ela absorver o seu maior legado. O coração e as palavras que são sempre novas todos os dias, pois elas procuram construir um equilíbrio. 

Um equilíbrio que se sobreponha aos labirintos e ao caos, desvendando as sombras que no real nos afastam da essência. Palavras, como instrumentos para podermos abordar os dias, reconquistando um real a esse caos, tantas vezes usado e criado por desleixo e falta de vontade humana. Sophia abriu as palavras e com elas a realidade a nós, abrindo o Pórtico que ilumina cada homem que recebe esse bem sagrado que é a vida. As suas palavras são uma permanente iluminação, por onde se busca a mais perfeita claridade. Sophia criou um reino, uma linguagem que se exprime na sua Poesia, como uma forma de tornar possível, de fazer nascer um real onde se fragmentam os nossos passos de sol.

 (1) - Andresen, S. de M. B. ( ....) No tempo dividido. Alfragide: Caminho.